Por David Roberto R. Soares da Silva
Acredite, você não é imortal.
No Brasil, falar em testamento ainda é tabu.
Não são poucos os casos que testemunhei no escritório ao falar sobre testamento a um cliente e ele reagir com um sinal da cruz ou três batidinhas na madeira, e dizer: “Doutor, não quero mexer nisso senão atrai…”
Mas atrai o quê? Para mim, não mexer “com isso” (o testamento) só pode atrair problema.
Talvez seja a tradição judaico-cristã do país, talvez seja a alegria de viver inerente à nossa cultura, o fato é que o brasileiro não gosta de pensar que um dia vai morrer. Simples assim. Se ele ou ela for ainda jovem, nos seus 30 ou 40 anos, filhos ainda em idade escolar, falar em testamento, então, parece ser uma heresia. “Doutor, ainda sou jovem, cheio de saúde, então o testamento não é uma prioridade neste momento”. Será?
Vamos imaginar algumas situações:
Situação 1: você se separou, a relação com o(a) ex não é das melhores e seus filhos ainda são pequenos. Não é uma situação incomum. Caso aconteça uma fatalidade, quem você gostaria que administrasse os bens a serem herdados por seus filhos até atingirem a maioridade (18 anos)? Seus pais ou irmãos, ou o seu/sua ex?
E se você tiver uma empresa, será que gostaria que seu ex-marido ou ex-mulher interferisse na gestão dela, tomando decisões corporativas e recebendo lucros e dividendos em nome de seus filhos?
Pois bem, sem um testamento, será seu ex quem irá administrar o dinheiro, a casa, e todos os outros bens em nome dos seus filhos menores… Mas isso pode ser evitado com um testamento no qual você nomeia outra pessoa para administrar os bens de seus filhos até atingirem a maioridade. Para saber mais, clique aqui e assista este vídeo.
Situação 2: você tem quatro filhos e casado com separação total de bens. Seus filhos são maiores de idade e têm sua própria vida. Você já reduziu o ritmo de trabalho e curte sua aposentadoria com seu marido ou sua mulher, ambos já na terceira idade. Sem um testamento e por causa do seu regime de bens, o seu marido ou mulher, companheiro de décadas, irá herdar, no máximo, 20% do patrimônio. O restante será partilhado entre seus quatro filhos pois, no regime da separação total de bens, o cônjuge não é meeiro (titular de 50% do patrimônio do casal), mas apenas herdeiro, tal como os filhos.
Se essa é uma situação com a qual você não se importa, tudo bem. Mas se não for o caso, com um testamento você poderá aumentar esse quinhão de 20% para 60%, legando-lhe a sua parcela do patrimônio disponível (50%).
Situação 3: você tem três filhos maiores de idade e sempre ajudou financeiramente dois deles que não paravam em empregos e tinham mais despesas do que rendimentos. O seu terceiro filho jamais lhe pediu dinheiro.
Sem um testamento, o seu patrimônio será dividido em três partes iguais. Você pode não achar esta divisão justa, desejando fazer alguma compensação em favor do filho que jamais lhe deu trabalho. Se não quiser fazer uma doação em vida, somente um testamento poderá ajudá-lo a deixar aquele algo a mais a esse filho.
Isso vale, também, para deixar um ou mais bens específicos a um herdeiro, parente, cônjuge, evitando brigas e longas disputas no processo de inventário.
Situação 4: seus filhos já cresceram e você vive na sua casa apenas com sua mulher ou marido. Quando um dos dois vier a falecer, a casa ficará grande demais para uma pessoa sozinha e você quer garantir que o imóvel possa gerar uma renda ao cônjuge sobrevivente até a sua morte. Por outro lado, sendo este o bem de maior valor da família, seus filhos poderão herdar uma fração ideal dele, que será detido em condomínio por todos.
Um testamento pode ser útil para atribuir a sua parcela disponível no imóvel ao cônjuge sobrevivente, dando-lhe direito a uma parcela maior do preço caso o imóvel seja vendido. Mas, além disso, o testamento permite que você deixe para sua mulher ou marido (ou companheiro) o usufruto do imóvel, o que na prática significa que ele ou ela poderá alugar o imóvel, sem a anuência dos filhos, e receber todo o aluguel, garantindo, assim, uma renda mensal.
Situação 5: você é solteiro, viúvo ou divorciado, com ou sem filhos, mas vive numa união estável com outra pessoa sem qualquer formalização desta relação. No seu falecimento, seu companheiro ou companheira deverá promover o reconhecimento judicial da união estável para que ele ou ela possa ter direito a uma parcela do seu patrimônio (meação e/ou herança). Este reconhecimento pode ser complicado, pois exigirá a apresentação de provas, testemunhas, documentos, não apenas para comprovar a existência da relação, como também quando ela começou.
Se você não quiser formalizar a relação em vida, por meio de um contrato de convivência, o testamento é de grande utilidade para você reconhecer a existência da união estável, evitando muita dor de cabeça ao companheiro sobrevivente, especialmente junto a familiares que possam ter interesse em seu patrimônio. Uma disputa judicial sobre o reconhecimento da união estável é custosa, demorada e cheia de ressentimentos e mágoas que você, certamente, irá querer evitar.
Por fim, à exceção da doação em vida, o testamento é o único instrumento que permite você gravar seus bens com as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, garantindo, assim, maior proteção aos sucessores. Ele ainda pode ser utilizado para outras situações não patrimoniais, tais como o reconhecimento de um filho, a criação de uma fundação e até mesmo a emancipação de um filho com 16 anos, tornando-o capaz para atos da vida civil.
As situações acima são casos reais que lidamos todos os dias. É incrível como as pessoas não veem a importância que um testamento tem para suas vidas. Ele não é útil apenas para os idosos ou os muito ricos; ele é útil para a maioria das pessoas.
O testamento não atrai nada de ruim. Ele é um ato de amor que permite você organizar seu patrimônio e garantir proteção adequada a quem você mais ama, evitando ou minimizando problemas, disputas, brigas, custos, mágoas e ressentimentos.
Ruim é não fazer nada para proteger quem você ama.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos. Também publicou Brazil Tax Guide for Foreigners e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos pela Editora B18.