Por David Roberto R. Soares da Silva<\/a><\/strong><\/p> Em sede de planejamento sucess\u00f3rio, n\u00e3o raro a doa\u00e7\u00e3o de bens configura instrumento poderoso. Ela permite partilhar bens espec\u00edficos a certos herdeiros, bem como inserir cl\u00e1usulas de prote\u00e7\u00e3o, como incomunicabilidade, impenhorabilidade, revers\u00e3o, usufruto etc. <\/p> Quando o doador falece os herdeiros que receberam doa\u00e7\u00f5es como antecipa\u00e7\u00e3o da leg\u00edtima devem informar os bens e valores recebidos do doador nessa condi\u00e7\u00e3o (antecipa\u00e7\u00e3o) a fim de igualar a heran\u00e7a (leg\u00edtima) entre todos os herdeiros necess\u00e1rios. Esse procedimento de informar as doa\u00e7\u00f5es recebidas \u00e9 chamado \u201ccola\u00e7\u00e3o\u201d. Assim, trazer bens \u00e0 cola\u00e7\u00e3o do invent\u00e1rio significa informar, no processo judicial ou extrajudicial de invent\u00e1rio, aquilo que o herdeiro recebeu do doador para que a parcela da leg\u00edtima seja igual entre todos os herdeiros necess\u00e1rios.<\/p> Essa obriga\u00e7\u00e3o consta expressamente do C\u00f3digo Civil, cujo art. 2.003 estabelece o seguinte:<\/p> “Art. 2.003. A cola\u00e7\u00e3o tem por fim igualar, na propor\u00e7\u00e3o estabelecida neste C\u00f3digo, as leg\u00edtimas dos descendentes e do c\u00f4njuge sobrevivente, obrigando tamb\u00e9m os donat\u00e1rios que, ao tempo do falecimento do doador, j\u00e1 n\u00e3o possu\u00edrem os bens doados.<\/em><\/p> Par\u00e1grafo \u00fanico. Se, computados os valores das doa\u00e7\u00f5es feitas em adiantamento de leg\u00edtima, n\u00e3o houver no acervo bens suficientes para igualar as leg\u00edtimas dos descendentes e do c\u00f4njuge, os bens assim doados ser\u00e3o conferidos em esp\u00e9cie, ou, quando deles j\u00e1 n\u00e3o disponha o donat\u00e1rio, pelo seu valor ao tempo da liberalidade.<\/em>“<\/p> Uma quest\u00e3o frequente em casos envolvendo doa\u00e7\u00f5es em antecipa\u00e7\u00e3o da leg\u00edtima, e a sua consequente cola\u00e7\u00e3o no processo de invent\u00e1rio, diz respeito \u00e0 apura\u00e7\u00e3o do valor a ser atribu\u00eddo \u00e0 doa\u00e7\u00e3o para fins de cola\u00e7\u00e3o, especialmente quando h\u00e1 um decurso consider\u00e1vel de tempo entre o ato da doa\u00e7\u00e3o em si e a abertura da sucess\u00e3o (ou seja, o falecimento do doador).<\/p> O tema tem sido objeto de muitas controv\u00e9rsias e, tamb\u00e9m, de altera\u00e7\u00f5es legislativas nos \u00faltimos anos, valendo \u00e0 pena jogar um pouco de luz sobre o assunto.<\/p> O antigo C\u00f3digo de Processo Civil (Lei n\u00ba 5.869\/1973), previa que os bens trazidos \u00e0 cola\u00e7\u00e3o deveriam ser avaliados pelo valor que tivessem na data do falecimento<\/strong> (abertura da sucess\u00e3o). Era o que dispunha o par\u00e1grafo \u00fanico do art. 1.014 do referido C\u00f3digo, nesses termos:<\/p> \u201cArt. 1.014. No prazo estabelecido no art. 1.000, o herdeiro obrigado \u00e0 cola\u00e7\u00e3o conferir\u00e1 por termo nos autos os bens que recebeu ou, se j\u00e1 os n\u00e3o possuir, trar-lhes-\u00e1 o valor.<\/em><\/p> Par\u00e1grafo \u00fanico. Os bens que devem ser conferidos na partilha, assim como as acess\u00f5es e benfeitorias que o donat\u00e1rio fez, calcular-se-\u00e3o pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucess\u00e3o<\/u><\/strong>.\u201d<\/em><\/p> Esse crit\u00e9rio vigou at\u00e9 a entrada do atual C\u00f3digo Civil de 2002, (Lei n\u00ba 10.406\/2002), que alterou o crit\u00e9rio para que o valor a ser trazido \u00e0 cola\u00e7\u00e3o fosse aquele constante do ato de liberalidade<\/strong>, ou seja, do ato de doa\u00e7\u00e3o. \u00c9 o que disp\u00f5e o seu art. 2.004, sen\u00e3o vejamos:<\/p> \u201cArt. 2.004. O valor de cola\u00e7\u00e3o dos bens doados ser\u00e1 aquele<\/strong>, certo ou estimativo, que lhes atribuir o ato de liberalidade<\/strong>.\u201d<\/em><\/p> Por ser lei posterior (2002), o C\u00f3digo Civil revogou a disposi\u00e7\u00e3o que continha no (ainda vigente) C\u00f3digo de Processo Civil de 1973. Com isso, nos processos de invent\u00e1rio em curso ou abertos a partir da vig\u00eancia do C\u00f3digo Civil\/2002 passaram a considerar, para fins de cola\u00e7\u00e3o, o valor da doa\u00e7\u00e3o \u2013 certo ou estimado \u2013 constante do respectivo documento (ex., contrato, escritura).<\/p> De certa forma, a mudan\u00e7a trazida pelo C\u00f3digo Civil trouxe poderia gerar injusti\u00e7as entre os herdeiros, especialmente nos casos de doa\u00e7\u00f5es feitas muitos anos, por vezes d\u00e9cadas, antes do falecimento do doador. Donat\u00e1rios nessas condi\u00e7\u00f5es poderiam se encontrar em situa\u00e7\u00f5es mais vantajosas, dado que trariam bens \u00e0 cola\u00e7\u00e3o por valor hist\u00f3rico, aumentando seu quinh\u00e3o na heran\u00e7a durante o processo de invent\u00e1rio.<\/p> Digamos que Jos\u00e9, vi\u00favo e pai de Pedro e Sandra, possu\u00edsse dois apartamentos iguais e de mesmo valor. Num dado momento, Jos\u00e9 doa um dos im\u00f3veis a Sandra como antecipa\u00e7\u00e3o de leg\u00edtima pelo valor venal de ent\u00e3o, digamos R$ 100 mil. N\u00e3o h\u00e1 doa\u00e7\u00e3o para Pedro e Jos\u00e9 continua residindo no outro im\u00f3vel por vinte anos, quando vem a falecer. Na data do falecimento, o im\u00f3vel n\u00e3o doado possui valor venal atual de R$ 1 milh\u00e3o e Jos\u00e9 n\u00e3o deixa outros bens. Seguindo a sistem\u00e1tica do C\u00f3digo Civil de 2002<\/strong>, Sandra deveria trazer \u00e0 cola\u00e7\u00e3o o im\u00f3vel recebido pelo valor na data da doa\u00e7\u00e3o, qual seja, R$ 100 mil. Assim, o montante a partilhar entre os dois irm\u00e3os totalizaria R$ 1.100.000, cabendo R$ 550 mil para cada.<\/p> Neste contexto, Sandra manteria o im\u00f3vel recebido em doa\u00e7\u00e3o por R$ 100 mil e ainda teria direito a 45% do outro im\u00f3vel (totalizando R$ 550 mil). Pedro, por sua vez, seria propriet\u00e1rio de 55% do apartamento em que habitava o pai e nada mais.<\/p> N\u00e3o h\u00e1 d\u00favidas de que essa sistem\u00e1tica era prejudicial a herdeiros, especialmente \u00e0queles que somente viessem a receber bens quando da abertura da sucess\u00e3o em compara\u00e7\u00e3o \u00e0queles que recebem doa\u00e7\u00f5es em antecipa\u00e7\u00e3o de legitima.<\/p> Por algumas vezes, o Superior Tribunal de Justi\u00e7a (STJ) acatou a legalidade da \u2018injusti\u00e7a\u2019 acima, reconhecendo que o valor do bem a ser trazido \u00e0 cola\u00e7\u00e3o era o valor atribu\u00eddo no momento da doa\u00e7\u00e3o, nos termos do art. 2.004 do C\u00f3digo Civil, acima transcrito. Todavia, o mesmo STJ atenuava a injusti\u00e7a ao admitir a corre\u00e7\u00e3o monet\u00e1ria do bem at\u00e9 a data da abertura da sucess\u00e3o.<\/p> Em julgado paradigm\u00e1tico, assim decidiu o STJ em 2017:<\/p> \u201cRecurso especial. Sucess\u00e3o. Bens \u00e0 cola\u00e7\u00e3o. Valor dos bens doados. Aplica\u00e7\u00e3o da lei vigente \u00e0 \u00e9poca da abertura da sucess\u00e3o. Aplica\u00e7\u00e3o da regra do art. 2.004 do cc2002. Valor atribu\u00eddo no ato de liberalidade com corre\u00e7\u00e3o monet\u00e1ria at\u00e9 a data da sucess\u00e3o. Recurso especial improvido.<\/em><\/p> 1. Tendo sido aberta a sucess\u00e3o na vig\u00eancia do C\u00f3digo Civil de 2002, deve-se observar o crit\u00e9rio estabelecido no art. 2.004 do referido diploma, que modificou o art. 1.014, par\u00e1grafo \u00fanico, do C\u00f3digo de Processo Civil de 1973, pois a contradi\u00e7\u00e3o presente nos diplomas legais, quanto ao valor dos bens doados a serem trazidos \u00e0 cola\u00e7\u00e3o, deve ser solucionada com observ\u00e2ncia do princ\u00edpio de direito intertemporal tempus regit actum.<\/em><\/p> 2. O valor de cola\u00e7\u00e3o dos bens dever\u00e1 ser aquele atribu\u00eddo ao tempo da liberalidade, corrigido<\/em> monetariamente at\u00e9 a data da abertura da sucess\u00e3o.<\/em><\/p> 3. Existindo diverg\u00eancia quanto ao valor atribu\u00eddo aos bens no ato de liberalidade, poder\u00e1 o julgador determinar a avalia\u00e7\u00e3o por per\u00edcia t\u00e9cnica para aferir o valor que efetivamente possu\u00edam \u00e0 \u00e9poca da doa\u00e7\u00e3o.<\/em><\/p> 4. Recurso especial n\u00e3o provido.” <\/em>(STJ, RESP N\u00ba 1.166.568, Relator: L\u00e1zaro Guimar\u00e3es, Quarta Turma, J.12\/12\/2017).<\/p> Essa possibilidade de injusti\u00e7a permaneceu at\u00e9 a entrada em vigor do novo C\u00f3digo de Processo Civil (Lei n\u00ba 13.105\/2015), cujo art. 639 restabeleceu que a valora\u00e7\u00e3o dos bens trazido \u00e0 cola\u00e7\u00e3o dever\u00e1 ser feita pelo seu valor \u00e0 data do falecimento (abertura da sucess\u00e3o), da seguinte forma:<\/p> \u201cArt. 639. No prazo estabelecido no art. 627, o herdeiro obrigado \u00e0 cola\u00e7\u00e3o conferir\u00e1 por termo nos autos ou por peti\u00e7\u00e3o \u00e0 qual o termo se reportar\u00e1 os bens que recebeu ou, se j\u00e1 n\u00e3o os possuir, trar-lhes-\u00e1 o valor.<\/em><\/p> Par\u00e1grafo \u00fanico. Os bens a serem conferidos na partilha<\/strong>, assim como as acess\u00f5es e as benfeitorias que o donat\u00e1rio fez, calcular-se-\u00e3o pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucess\u00e3o<\/strong>.\u201d<\/em><\/p> Com essa altera\u00e7\u00e3o, usando o mesmo exemplo de Sandra e Pedro, o im\u00f3vel doado \u00e0 Sandra (id\u00eantico ao im\u00f3vel que habitou Jos\u00e9) deveria ser trazido \u00e0 cola\u00e7\u00e3o pelo seu valor venal corrente, qual seja, de R$ 1 milh\u00e3o. Com isso, o montante a partilhar seria de R$ 2 milh\u00f5es, podendo cada irm\u00e3o ficar com um apartamento para si, sem preju\u00edzo a qualquer um deles.<\/p> J\u00e1 na vig\u00eancia do novo C\u00f3digo de Processo Civil de 2015 (CPC 2015), o Tribunal de Justi\u00e7a de S\u00e3o Paulo (TJSP) passou a reconhecer que o valor do bem trazido \u00e0 cola\u00e7\u00e3o em invent\u00e1rio dever\u00e1 ser aquele apurado na data da abertura da sucess\u00e3o (falecimento) e n\u00e3o na data da doa\u00e7\u00e3o.<\/p> Em recente decis\u00e3o \u2013 de maio de 2021 \u2013 o TJSP estabeleceu que, com rela\u00e7\u00e3o a um im\u00f3vel doado a um herdeiro, o valor a ser considerado deveria ser o valor venal do ano do \u00f3bito e n\u00e3o o valor atribu\u00eddo quando da doa\u00e7\u00e3o. Vejamos:<\/p> “Invent\u00e1rio<\/em><\/em> \u2013 Decis\u00e3o que determinou, com rela\u00e7\u00e3o ao im\u00f3vel doado \u00e0 agravante, a fixa\u00e7\u00e3o do valor venal\/IPTU 2008 \u2013 Inconformismo da recorrente (buscando a fixa\u00e7\u00e3o do valor constante na liberalidade) \u2013 N\u00e3o acolhimento \u2013 Valor da doa\u00e7\u00e3o inferior ao venal \u2013 Pretens\u00e3o recursal que afronta a regra do art. 639, par\u00e1grafo \u00fanico, do CPC (que estabelece, para fins de partilha, o valor venal ao tempo da abertura da sucess\u00e3o) \u2013 Precedentes – Decis\u00e3o mantida \u2013 Recurso improvido.<\/em>” (TJSP \u2013 Agravo de Instrumento 2260318-33.2020.8.26.0000, Data de Julgamento: 28\/05\/2021).<\/p> Com rela\u00e7\u00e3o \u00e0s doa\u00e7\u00f5es em dinheiro, o mesmo TJSP j\u00e1 havia decidido que, para fins de cola\u00e7\u00e3o, o valor doado deve ser corrigido monetariamente, obedecendo ao que disp\u00f5e o art. 639, par\u00e1grafo \u00fanico do CPC 2015, sen\u00e3o vejamos:<\/p> “Invent\u00e1rio – Decis\u00e3o que reconheceu configurada a doa\u00e7\u00e3o realizada pela autora da heran\u00e7a ao coerdeiro em adiantamento de leg\u00edtima determinando que este traga a cola\u00e7\u00e3o o bem adquirido – Insurg\u00eancia do coerdeiro requerendo que seja colacionado o valor – Conforme c\u00f3pia do cheque juntado aos autos verifica-se que a doa\u00e7\u00e3o foi da quantia e n\u00e3o do pr\u00f3prio bem – Cola\u00e7\u00e3o que dever\u00e1 ser feita pelo valor doado corrigido at\u00e9 a abertura da sucess\u00e3o<\/strong> – Art. 639, par\u00e1grafo \u00fanico CPC -Decis\u00e3o parcialmente modificada – Recurso parcialmente provido .<\/em>\u201d (TJSP; Agravo de Instrumento 2192746-31.2018.8.26.0000; Data do Julgamento: 11\/02\/2019).<\/p> Com a modifica\u00e7\u00e3o introduzida pelo CPC 2015, tem-se que as cola\u00e7\u00f5es dever\u00e3o ser trazidas ao invent\u00e1rio pelo valor apurado no momento do falecimento<\/strong>. Se forem bens im\u00f3veis, o valor venal do ano da abertura da sucess\u00e3o parece adequado. Quando feitas em dinheiro, as doa\u00e7\u00f5es devem considerar a corre\u00e7\u00e3o monet\u00e1ria do per\u00edodo desde a doa\u00e7\u00e3o a fim de evitar que o lapso de tempo seja causa de injusti\u00e7as entre os herdeiros.<\/p> David Roberto R. Soares da Silva\u00a0<\/strong><\/a>\u00e9 advogado tributarista, tamb\u00e9m especializado em planejamento patrimonial e sucess\u00f3rio. \u00c9 s\u00f3cio do\u00a0Battella, Lasmar & Silva Advogados<\/strong><\/a>, autor do\u00a0Brazil Tax Guide for Foreigners<\/a><\/strong>\u00a0(2021), e coautor do\u00a0Planejamento Patrimonial: Fam\u00edlia, Sucess\u00e3o e Impostos<\/strong><\/a>\u00a0(2018),\u00a0Tributa\u00e7\u00e3o da Economia Digital no Brasil<\/a>\u00a0<\/strong>(2020),\u00a0Renda Vari\u00e1vel: Investimentos, Tributa\u00e7\u00e3o e Como Declarar<\/a><\/strong>\u00a0(2021), e do\u00a0e-book<\/em>\u00a0Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucess\u00e3o<\/a><\/strong>, todos publicados pela Editora B18.<\/p> CHEGOU A NOVA EDI\u00c7\u00c3O DO NOSSO BEST-SELLER QUE EXPLICA TUDO SOBRE LEG\u00cdTIMA, DISPON\u00cdVEL, COLA\u00c7\u00c3O DE BENS E MUITO MAIS!<\/span><\/strong><\/p>